segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Cérebro azul, Cérebro rosa


«A editora de Ciência da "Newsweek" analisa como e porquê o olhar dos adultos sobre as crianças pode ser "deformado" por um preconceito em relação ao género.

Texto de Sharon Begley


Entre alguns pais, é um artigo de fé que não só devem tratar da mesma forma os filhos e as filhas mas também que assim o fazem. Se o Jack tem um Lincoln Logs e o Tetris e entra para a equipa de futebol e o clube de matemática, a Jill também. Lise Eliot, neurocientista da Rosalind Franklin University of Medicine and Science, pensa que estes pais não estão necessariamente a mentir. Mas gostava de lhes mostrar alguns estudos.
Num deles, os cientistas vestiram bebés recém-nascidos com roupas de cores neutras relativamente ao género e deram aos adultos uma informação errada quanto ao sexo da criança. Os adultos descreveram os "rapazes" (na verdade raparigas) como estando zangados ou inquietos, mais vezes do que os adultos que pensavam que estavam a observar raparigas, e descreveram as "raparigas" (na verdade rapazes) como sendo alegres e socialmente empenhados mais vezes do que os adultos que sabiam que os bebés eram rapazes. Dezenas de outras experiências semelhantes disfarçando o sexo das crianças mostraram que os adultos vêem de forma diferente os bebés rapazes e raparigas, olhando comportamentos idênticos com um preconceito associado ao género. Noutro estudo, diversas mães calculavam qual o grau de declive que os seus filhos de 11 meses conseguiam descer. As mães dos rapazes enganaram-se no máximo de um grau; as mães das raparigas subestimaram a capacidade das filhas em nove graus, embora não haja diferenças nas capacidades motoras de rapazes e raparigas. Mas esse preconceito pode levar os pais a limitar inconscientemente a actividade física das suas filhas, O modo como vemos os filhos — sociáveis ou distantes, fisicamente destemidos ou hesitantes — define a maneira como os tratamos e portanto as experiências que lhes proporcionamos. Como a vida deixa pegadas na estrutura e função do cérebro, estas experiências diversas produzem diferenças no comportamento e no cérebro do adulto conforme o sexo — não são o resultado de uma natureza inata ou congénita, mas sim adquiridos.
Para o seu novo livro, "Pink Brain, Blue Brain: How Small Differences Grow Into Trouble-some Gaps — And What We Can Do About It" (Cérebro Rosa, Cérebro Azul como pequenas diferenças se podem transformar em disparidades preocupantes — e o que podemos fazer sobre isso), Eliot examinou centenas de ensaios científicos (só a bibliografia do livro ocupa 46 páginas). Analisando em detalhe as teses propostas, a autora explica que as afirmações de que existem diferenças cerebrais inatas entre os dois sexos ou são "descaradamente falsas" ou "escolhidas a dedo em estudos sim-ples", ou "extrapoladas de investigação com roedores" sem serem confirmadas em pessoas. Por exemplo, a ideia de que o feixe de fibras que liga o hemisfério esquerdo ao direito é maior nas mulheres, supostamente apoiando o seu raciocínio mais "holístico", baseia-se num estudo de 1982 com apenas 14 cérebros. Outros 50 ensaios, no seu conjunto, não encontraram essas diferenças, nem entre adultos nem entre recém-nascidos. Outras afirmações sem fundamento: as mulheres estão mais predispostas a ler rostos e o tom de voz, a neutralizar conflitos e a fazer amizades profundas; e que o cérebro das "raparigas têm predisposição para a comunicação e o dos rapazes para a agressão". A conclusão categórica de Eliot: "Há poucas provas sólidas de diferenças entre sexos no cérebro das crianças."
Contudo, há diferenças no cérebro do adulto e neste ponto Eliot é especialmente original e persuasiva: explica como elas surgem de pequenas diferenças entre sexos na infância. Por exemplo, os bebés do sexo masculino são mais irritáveis do que os do sexo feminino. Isso torna mais provável que os pais interajam menos com os seus filhos "não sociais", o que pode levar a um desenvolvimento diferente dos dois sexos. Aos quatro meses de idade, rapazes e raparigas diferem no que respeita à capacidade de manter contacto visual, e as diferenças relativas à sociabilidade, à expressividade emocional e à capacidade verbal — todas dependentes da interacção com os pais — crescem no decurso da infância. A mensagem de que os rapazes estão predispostos para serem não verbais e emocionalmente distantes torna-se assim uma profecia que se cumpre por si própria. Os sexos "começam um pouco diferentes" a nível de irritabilidade, diz Eliot, e os pais "reagem diferentemente a eles", produzindo as diferenças que se vêem na idade adulta.
Essas diferenças também derivam de uma conformidade de géneros. Vemos muitas vezes a afirmação de que se as preferências por brinquedos — camiões ou bonecas — aparecem tão cedo é porque têm de ser inatos. Mas, como Eliot salienta, as crianças de ambos os sexos entre os 6 e os 12 meses de idade preferem bonecas a camiões, de acordo com uma série de estudos. As crianças só começam a aceitar as preferências quanto às brincadeiras por volta de um ano de idade, altura em que percebem qual é o seu sexo, se identificam fortemente com ele e se regem pelo comportamento que vêem nos outros rapazes ou raparigas geralmente mais velhos. "Os alunos pré-escolares já têm consciência do que é aceitável para os seus colegas e o que não é", escreve Eliot. Essas preferências quanto às brincadeiras são uma bola de neve, produzindo cérebros com talentos diferentes.
A crença em cérebros azuis ou rosas tem consequências na vida real, razão que leva Eliot a procuradas com tanto vigor (e rigor). Encoraja os país a tratarem os filhos de forma a que as afirmações se tornem verdadeiras, negando aos rapazes e às raparigas o total do seu potencial. "As crianças levantam-se ou caem de acordo com aquilo que pensamos sobre elas", diz ela. E a crença alimenta a inclinação por escolas não mistas, que se baseia em parte na falsa afirmação de que os cérebros dos rapazes e das raparigas processam a informação sensorial e pensam diferentemente, Novamente, Eliot não hesita em invalidar esta afirmação "manifestamente absurda". Leiam o seu livro magistral e nunca mais verão da mesma maneira a discussão sobre diferenças de sexo.»

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